sábado, 25 de outubro de 2014

CULTURA BRASILEIRA - Aula 06 - Uma Cultura de Fé




Uma cultura de fé

Santo António já foi vereador no Brasil: o santo ganhou salário, cadeira no plenário e apoio popular dos colegas da câmara. Isso mostra que é muito natural o Brasileiro relacionar cultura e religião.

Sergio Buarque de Holanda, foi um dos maiores intérprete do Brasil no século XX, é dele o estudo clássico sobre a cultura brasileira chamado “Raízes do Brasil” escrito em 1936. Uma das muitas sacadas do livro foi a ideia de que no Brasil os cultos religiosos parecem assumir um caráter intimista auto amável quase fraterno que se acomoda mal as cerimônias e suprime as distâncias.

Nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos. A popularidade, entre nós, de uma santa Teresa de Lisieux — santa Teresinha — resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto, culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. É o que também ocorreu com o nosso Menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianças e que faz pensar menos no Jesus dos evangelhos canônicos do que no de certos apócrifos, principalmente as diversas redações do Evangelho da Infância. Os que assistiram às festas do Senhor Bom Jesus de Pirapora, em São Paulo, conhecem a história do Cristo que desce do altar para sambar com o povo. Essa forma de culto, que tem antecedentes na península Ibérica, também aparece na Europa medieval e justamente com a decadência da religião palaciana, superindividual, em que a vontade comum se manifesta na edificação dos grandiosos'monumentos góticos. Transposto esse período —1 afirma um historiador — surge um sentimento religioso mais humano e singelo. Cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos já não aparecem como entes privilegiados e eximidos de qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus é um amigo familiar, doméstico e próximo — o oposto do Deus "palaciano", a quem o cavaleiro, de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor feudal. O que representa semelhante atitude é uma transposição característica para o domínio do religioso desse horror às distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro. Note-se que ainda aqui nós nos comportamos de modo perfeitamente contrário à atitude já assinalada entre japoneses, onde o ritualismo invade o terreno da conduta social para dar-lhe mais rigor. No Brasil é precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza. (p. 149)

No Brasil, vale toda mistura, todo apego a todas as proteções divinas para nossas atividades terrenas. Não consideramos qualquer tipo de crendice uma mera superstição, mas um jeito de alimentar a nossa chance de estar protegido, então a relação que se mantém com divindade se torna quase sempre pessoal, passional, direta, motivado pela simpatia e pela lealdade, mesmo quando nossa religião tem um intermediário: padre, pastor, pai de santo ou médium.

A uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaboração política seria possível senão fora dela, fora de um culto que só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade (p. 150).

No apego ao concreto uma reza nem sempre basta, muitas vezes se intui que é necessário fazer a súplica acompanhada por algum objeto ou mimo, promessas e oferendas, que tem apelo muito mais dramático para sensibilizar o divino. Daí a linguagem religiosa seja marcada por gestos e movimentos de comunhão que vão desde os pulinhos de Iemanjá e São Longuinho ao envio de energia positiva ou negativa coma as mãos para o campo de futebol.


A grande contribuição brasileira seria a comunhão das religiosidades, aqui diferentes crenças religiosas são complementares, o brasileiro busca na religião tudo que o ajude a se relacionar, tudo que dispense esforço exagerado. O que evita a tirania sobre nos mesmos, venha de onde vier sem tanta exclusividade assim.

Essa aversão ao ritualismo conjuga-se mal — como é fácil imaginar — com um sentimento religioso verdadeiramente profundo e consciente. Newman, em um dos seus sermões anglicanos, exprimia a "firme convicção" de que a nação inglesa lucraria se sua religião fosse mais supersticiosa, more bigoted, se estivesse mais acessível à influência popular, se falasse mais diretamente às imaginações e aos corações. No Brasil, ao contrário, foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, "democrático", um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso (p. 150).

A cultura religiosa brasileira passa por uma mudança desde a virada para o século XXI. De um lado as religiões começam a não ser a única fonte capaz de conferir significado a existência do homem, como a sociedade passa a ser cada vez mais laica, e menos tutelada por diretrizes religiosas. De outro lado o Brasil devoto vai diminuir a hegemonia católica, que por muito tempo foi intolerante com outras religiões, apesar da ambiguidade brasileira.

Novas formas de expressão, de fé e misticismo, começam a se firmar pelo país com explosivo aumento no mercado de crenças. Vivemos uma proliferação de seitas, igrejas explicitamente gerenciadas como empresas. Meios de comunicação de massa a serviço da devoção, novos templos criados com sistemas de crenças fluidos e não muito claros. O suficiente para colocar esse mercado em expansão em sintonia com o sistema de consumo atual em que cada pessoa tem sua individualidade reconhecida por ser dado a ela escolher o tipo de religião de sua preferência.

Agora o panorama se inclina para uma privatização de fé e fragmentação do mercado das crenças, com isso aumentam as demonstrações de intolerâncias mútuas entre religiões rivais. Apesar das mudanças na mentalidade religiosa brasileira a linguagem da fé predominante no Brasil diz Roberto da Mata, ainda continua a ser a linguagem do relacionamento, que  busca meio termo, a possibilidade de salvar todo mundo e encontrar algo de bom e digno.


Somos um povo que leva mais a sério o outro mundo do que um Deus autoritário e justiceiro com mandamentos estagnados e excludentes. Muitos são os caminhos brasileiros para chegar ao outro mundo, por que o outro mundo brasileiro é o lugar onde as coisas fazem sentido e são justas e equilibradas, porque a vida não é.

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